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“Parecia que o bairro era todo um, toda a gente se conhecia”

Lígia Ferro, Beatriz Lacerda e Joana Martins

Excerto da entrevista realizada a Joana Martins por Lígia Ferro e Beatriz Lacerda, no dia 18 de outubro de 2024, no Porto.


Joana Martins trabalha há onze anos no território de Contumil, em Campanhã, tendo começado no Bairro de Contumil e mais tarde no Bairro Engenheiro Machado Vaz, através do projeto Escolhas “Sinergi@s”, que coordena há sete anos. É licenciada e mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e, no papel de coordenadora, tem-se dedicado à promoção da inclusão social de crianças, jovens e famílias em situação de vulnerabilidade socioeconómica, através da implementação de estratégias de intervenção e fortalecimento comunitário.

Neste excerto, Joana expõe as principais mudanças a que tem assistido no bairro onde trabalha, a relação com as forças policiais e os mecanismos de proteção vigentes, quer entre a população, quer com o próprio projeto Escolhas.


[início do excerto]


Como é que tu vês a transformação do bairro ao longo destes anos em que lá estás?

Houve uns anos em que eu via o bairro de uma forma diferente, em que havia muito mais pessoas na rua, havia muito mais convívio nas ruas, brincadeiras, vias muitas crianças a brincar na rua. Era ... parecia que o bairro era todo um, toda a gente se conhecia, toda a gente...não vias violência, não ... se havia às vezes uns conflitos, tinha a ver com historiais de famílias.

 

Isso nos primeiros anos que tiveste?

Sim (...) já era noite e os miúdos estavam cá fora a brincar, e os pais faziam uma coisa, que era, enquanto estavam a fazer o jantar ou assim, os miúdos podiam estar cá fora, e depois jantavam e vinham cá para fora, principalmente na altura das férias. Os miúdos ficavam no bairro a brincar até às tantas, que era coisa que não se vê, não é? Onde eu cresci, não podíamos ficar até tarde, havia sempre o medo, “Ai não, vem alguém!”, ou “Vai-nos levar”. Ali não, ali havia uma confiança total no bairro, toda a gente confia em toda a gente. Agora se formos comparar com o que está a acontecer agora...

 

Agora isso não acontece?

Não.

 

Quando é que achas que isso mudou?

Mudou na altura do Covid. Foi onde começou essa grande mudança, havia menos pessoas na rua, mal víamos pessoas na rua, e a conviver...também por causa do que era, não é? Porque no Covid, foram os piores tempos...

 

Mas tu achas que isso quebrou as ligações, os laços?

(...) Quebrou as relações entre toda a gente. Acabou por não haver tanto aquele convívio. Foi aí uma grande quebra. Agora o que está a acontecer é mais a nível de criminalidade, é maior, é mais visível, acontece a céu aberto...

 

A seguir ao Covid?

Sim, começou a crescer cada vez mais. A perderem mais o medo de ser de dia ou de noite, e já não vês crianças na rua a brincar até tarde. Tanto no Verão como das outras vezes. Vês alguns que estão ali à beira da Sede [associação desportiva] e tal, mas não saem daí. Eles às vezes vinham para o Sinergi@s dizer “Oh Joana tivemos a brincar às escondidas pelo bairro todo até às duas da manhã”.

 

(...)

 

Há intervenções policiais no bairro?

Há e já existia antes.

 

Que tipo de criminalidade é que te estavas a referir e também em termos de intervenção policial como é que isso é gerido?

Um dos grandes crimes que existe dentro do bairro é o tráfico de droga e é o “guardar”. Nós temos alguns participantes que tiveram os pais presos porque guardavam em casa. A opinião que eles têm da polícia não é a mais positiva porque quando entram em casa, eles arrombam a casa, eles destroem tudo dentro de casa e levam o pai preso, não é? Eles não batem à porta...não. Não há isso. E fazem à frente de crianças, há uma violência muito grande em frente a toda e gente e eles ficam traumatizados. (...)

 

Isso é uma coisa falada também pelos participantes do projeto, pelos jovens, pelas crianças...

Sim, mas lá está, eles todos se conhecem ali, principalmente os mais velhos passam por ali, cumprimentam-nos. Pronto, foi uma escolha que decidiram fazer, foi entrar nesse mundo. Claro que depois, nós temos muitos encarregados de educação que vêm ter connosco e dizem “O meu sobrinho agora faz parte deste grupo, ele quis entrar aqui. Ele era tão bom jogador e podia ter seguido, podia ter seguido essa [carreira].” Ele foi chamado pelo Porto ou ele foi chamado por outro clube qualquer, podia estar a jogar neste momento, mas é o problema do dinheiro fácil. É que é imediato.

 

E também as perspetivas que eles têm não são as melhores, não é?

Não, e depois tem muito medo de ariscar. Apesar de até seguir uma boa área, se eu falhar acabou, ao menos aqui eu sei que estou no meu território, eu consigo confiar no pessoal que está aqui, e ao menos vou ganhando dinheiro para ter a minha vida.

 

(...)

 

Relativamente à segregação do bairro em si, há pessoas de fora do bairro que vão ao bairro?

Há, há, porque perto do bairro Engenheiro Machado Vaz, existe o bairro de São Roque e o bairro do Cerco e nós temos também crianças e jovens desses dois bairros que vem ter connosco e também existem familiares de outros...

 

Que vêm para o projeto, não é?

Que vêm para o projeto e não só, que também vêm para estar, encontrarem-se com a família, que está lá, ou com outras pessoas que estão na Sede.

 

Mas tem que haver sempre essa ligação, com pessoas do projeto ou familiares, este é um bairro mais fechado?

Hum, acho que não é um bairro fechado, acho que não é. Acho que mais fechado até é o bairro de São Roque. Esse é mais fechado. Aí não vês ajuntamentos, não vês muito convívio entre as pessoas, é um bairro muito mais parado, não vês ninguém cá fora. Enquanto que no bairro Engenheiro Machado Vaz ainda vês essas pessoas cá fora mas não vês tanto aquela ligação...aquele sentimento familiar...

 

Sim, aquela vida comunitária mais, para toda a gente estar na rua...

Sim, eu lembro-me quando eu vim para cá, uma das coisas que eu adorava neste bairro é que as pessoas estavam cá fora e nós passávamos com os miúdos e falavam connosco e diziam “Olha Joana, aconteceu me isto” ou “Ó Joana, queres ficar aqui? Queres ir beber um café?” Sinto que já não há essa familiaridade.

 

Então não podemos dizer que o bairro seja estigmatizado. Que haja um estigma de viver ali no bairro. Achas que as crianças e os jovens que lá vivem sentem isso?

Claro que é assim, é diferente, não é? Viveres num bairro, eles conseguem perceber que é diferente. Já senti, às vezes, quando nós vamos a outros espaços e falamos, eles não gostam que eu diga que é um projeto social, não querem ser vistos como alguém que frequenta um...

 

E identificares o bairro?

Também não. Não podemos dizer que é do Bairro Engenheiro Machado Vaz. Vive em Campanhã, é algo que ainda faz parte.

 

(...)

 

Se tu tivesses que estabelecer alguma diferença, relativamente a outros bairros, qual é que achas que é a especificidade do bairro?

É mais acolhedor.


É? Mesmo com estes problemas?

E protetor. Muito protetor. Eu acho que incluem qualquer pessoa que entre lá, seja de que minoria seja, eles vão acolher... E depois são muito protetores, principalmente das pessoas com as quais se identificam, sendo novas ou não. Apesar de nós nos conhecermos a todos, eles não tinham que defender o projeto Sinergi@s porque estava a ser assaltado. Mas eles fizeram questão de o proteger. Fizeram questão de ir ter com o senhor que o estava a assaltar e dizer: “Ou tu paras ou vais ter problemas aqui.”

 

[fim de excerto]